segunda-feira, 20 de julho de 2015

Vidas Simples

Resultado de imagem para fotos de avô com a burra Velhos com burros
(foto do google)


Acordou na suavidade do amanhecer. Abriu os olhos para a luz que lhe entrava pela porta entreaberta e deu graças ao seu Deus e  Criador. Mais um dia neste presente que Tu me ofereces Senhor. Mais um dia  sem que eu tenha feito alguma coisa para o merecer.
Aqui, ao meu redor, tudo canta e Te dá graças nesta manhã. Obrigado. 
São os animais que nos guardam, são as flores que olhamos, são as fontes onde bebemos e os campos onde labutamos e nos alimentamos. Obrigado. Também os ventos, o Sol ou a chuva que recebemos e até os mares e os rios onde pescamos cantam a Tua magnificência. Obrigado.

Depois, destes breves momentos, procurou as suas roupas e vestiu-se sem pressas. Tinha o dia todo. 
Vestiu, primeiro, uma camisa grossa de linho. Era aberta apenas em cima e aconchegada ao pescoço com três botões brancos.
Depois enfiou um pé nas calças e puxou-as para cima, mas logo voltou a descê-las para enfiar o outro pé na outra perneira.
Agora sim puxou-as para cima e muito acima da própria cintura.  Ao apertá-las com o cinto as calças faziam um folho a toda a largura, mas ele habituou-se assim.
Era como gostava de andar vestido. Finalmente calçou uns tamancos de madeira.

Vivia sozinho.
A sua Joaquina partiu numa tarde fria já lá vai um ror de anos. Agora sentia-se livre, mas mais triste. A viuvez vestiu-lhe os dias de cinzento.
Algumas viúvas sorriram-lhe num convite de partilha. Bastaria escolher uma delas para dividir e partilhar a sua solidão.
Não conseguiu nunca separar-se das memórias da sua falecida e agora já era tarde para tomar esta decisão.

Habituou-se a viver numa grande simplicidade. Todas as semanas uma das filhas limpava a casa e cuidava das roupas. Ele aprendeu a fazer a sua comida. 
Não podemos parar, dizia com um olhar atento. Enquanto puder vou fazendo pela vida. Não espero enriquecer, mas enquanto tiver forças continuarei a cuidar dos meus animais e da minha horta.
Duas ou três galinhas, um gato - o canito, um cão - o rafeiro que nunca o abandonava e a burra.
O canito e o rafeiro tinham carta branca e entravam em casa livremente.

Agora fazia contas à vida. Os trabalhos feitos e os que devia fazer, dando a cada um a primazia da necessidade. Nem a vinha pode esperar por uma cura de sulfato nem o milho e o feijão podem esperar por um a boa rega.
Nestes pensamentos de rotina foi construindo o seu dia de trabalho.

Cerca do meio dia voltava a casa. Habituou-se a fazer um caldinho, sopa. Nestas horas era normal ver os três dentro da cozinha. Ele, o canito e o rafeiro.
Gostava de estar ocupado. Não se sentia tão triste, nem os pensamentos o sobrecarregavam de lembranças dolorosas.
Pensar bem não pesa, mas as outras recordações avivam feridas que não queremos  nem amamos.

A primeira coisa que fazia quando entrava em casa era remexer a cinza do borralho. Juntava-lhe algumas carumas secas e soprava para reacender a fogueira.
Depois ajeitava uma panela de ferro de um lado e um púcaro de barro com água do outro lado. Acrescentava ainda alguns cavacos secos de modo a manter uma fogueia constante.
O canito soltou um miau, avisando também que estava com fome.
- Já vai...Tens de ter paciência. Tens de esperar pela tua vez.

Depois de saciado com o caldo e uma fatia de boroa foi a vez de repartir com o rafeiro e o canito. Cada um tinha a sua gamela. 
O sono veio de mansinho e ele dobrado sobre si num canto da mesa deixou-se dormir. Era a sua sesta.
Dez minutos depois já estava acordado.
- Ora vamos lá com Deus.
Era preciso continuar. Nunca se acabava o trabalho, graças a Deus. 

Foi para o pátio, soltou a russa, aparelhou-a e meteu-lhe as gingarelas, cangalhas. À noite, ela tem de trazer uma carga de couves e de feno verde para casa .  
- Oh, oh! Pode melhor do que eu! Então!?
Eram assim os seus dias, todos os dias do mês e do ano.
- Que Deus me ajude e guarde. Eu também não faço mal a ninguém! Dizia.
Passava os seus dias na companhia do rafeiro e metido apenas com estas preocupações.
Por vezes encontrava os seus vizinhos e então perdia-se na conversa com eles. Os temas eram sempre sobre o tempo ou as moléstias que dizimavam as vinhas ou as suas culturas.
O mundo ficava muito longe dos seus pensamentos. As notícias e as políticas não lhes diziam respeito.
Neste tempo, as notícias corriam lentamente e de tal modo lento que cada pessoa pensava que isso era um mundo diferente e distante onde eles nunca poderiam chegar...
luíscoelho
Julho,2015,20

6 comentários:

  1. Tudo isso mudou
    sem no essencial ter mudado

    Hoje, as notícias correm vertiginosamente e de tal modo céleres que cada pessoa pensa que isso é um mundo diferente e distante onde nunca poderão chegar...

    (mais um conto neo-realista para a minha lista...) :))

    ResponderEliminar
  2. Em algum lugar, alguém vive ainda em perfeita harmonia com a Natureza, curtindo essa aparente solidão.
    Um mundo em extinção!


    ResponderEliminar
  3. Luisamigo

    Ganda conto! Muito bem escrito, bem organizado, bem ilustrado: enfim, uma delícia. Já não se fazem contos destes hoje em dia, o que é uma chatice para quem padece da PDI... Gostei, gostei mesmo muito,caro Luís; um dia quando for grande quer ser um contista como tu. Se lá chegar, evidentemente.

    Abç do alfacinha e amigo

    Na Travessa tens à disposição o capitulo 5 do QUEM SABE SE?

    ResponderEliminar
  4. UMA PERGUNTA EM JEITO DE ADITAMENTO

    Por que razão não incluis a TRAVESSA na tua lista de blogues? Gostarei que o faças, tá bem?

    ResponderEliminar
  5. Creemos que porque nuestras vidas no son épicas, ni expresan acciones deslumbrantes, no valen pena, cuando la vida está compuesta de cosas simples, porque esas son las que le hacen justicia a la existencia humana. Un abrazo Luis, desde esta querencia colombiana. Carlos

    ResponderEliminar

Cada comentário é uma presença de amizade