domingo, 10 de janeiro de 2010

Raízes

No planalto da encosta de Penedono, com vista para a Serra da Lapa e para a encosta de Sernancelhe, vivia a família Amante Paixão.
Pessoas simples, honestas e lutadoras. Como se dizia na altura, juntaram os trapinhos e foram viver numa daquelas casas modestas, com uma única divisão. Em poucos metros quadrados, adaptaram  a sua vida de todos os dias.
A lareira, ficava cerca de 30 centímetros abaixo do nível do sobrado da casa. No outro extremo em frente da lareira,  ficava uma cama com algumas mantas tecidas de farrapos.
Na parte inferior da casa, acomodavam os animais, bois ou um burro se houvesse
Sentados no sobrado, aqueciam os pés à lareira, enquanto a mulher cozinhava o caldo das couves para a ceia.
Pobreza muito sofrida, no meio daquelas serranias ventosas de longos Invernos com neve branca ou o calor quente e seco do Verão.
As grandes pedras, que faziam as paredes exteriores da habitação, eram travadas por outras pedras mais pequenas e também por algum barro amassado para tapar as frestas maiores.
Procuravam ainda encostar a construção a um penedo de granito, para se protegerem dos ventos gelados do Inverno.
Os dias, começavam cedo e geralmente já com as tarefas previamente combinadas para cada um.
Vieram os filhos que rapidamente encheram a casa e lhe conferiram mais vida diariamente.
Dividiram então o exíguo espaço com uma divisória de madeira, de um lado para os pais e do outro para os filhos. Até à idade escolar, dormiam todos juntos.
A primeira, de oito filhos, nasceu em 1921. Menina desembaraçada e de uma inteligência prodigiosa.
Cedo começaram a dar-lhe as tarefas de casa e de cuidar dos irmãos.
Quando devia ir à escola para aprender a ler, os pais,  já tão habituados aos seus trabalhos que lhe recusaram esse direito. A menina, nem duvidou da bondade de seus pais. Aceitou em silêncio e viu todos os seus irmãos mais novos a aprenderem a ler e a escrever.
Eram muitos à mesa e a menina já sabia fazer muitas coisas. Decidiram então, mandá-la servir para uma casa de senhores abastados.
 Mais uma vez, aceitou aquelas ordens, sem perguntar porque tinha de ser assim. Porque tinha de ir para longe dos seus irmãos ?
Os anos foram passando e os rapazes da aldeia andavam de olho na moça. 
Desembaraçada e sempre procurando aprender todas as coisas que lhe pareciam ser o melhor dote de uma donzela. Aprendeu a fiar o linho e depois a tecê-lo.
Aprendeu a fazer a sua própria roupa e a apresentar-se sempre bem cuidada.
Tinha sempre a resposta pronta e certa. Nunca se envergonhou de dizê-la bem alto, se fosse necessário.
O pai, quis fazer-lhe o casamento com um moço rico e bem parecido. Desta vez,  a rapariga não aceitou e opôs-se mesmo ao seu pai.
Não meu pai, não quero casar-me com esse rapaz. Há coisas que o pai não vê. 
A Carminda estava muito longe de imaginar a triste sina que a esperava dois anos mais tarde.




                                                       2ª Parte


                                                  
Passado algum tempo, a Carminda apaixonou-se de verdade. Os seus pais concordaram com este casamento. Existia uma preocupação. Casar os filhos e deixá-los "arrumados" .
Quando se tratava de raparigas, a preocupação dos pais, ainda era maior.
A escolha caiu sobre um moço sem pais e carpinteiro de profissão. Bem falante e bem parecido de olhos azuis  e um porte elegante. Vivia na casa que era de seus pais e foi para lá que levou a noiva.
Trabalhavam ambos no campo, procurando aí a sua subsistência.
Numa horta que cultivavam para lá do ribeiro plantavam e colhiam as hortaliças para confeccionar a sopa.
Carne, só a comiam quando o Caciano caçava um coelho ou outra peça que enxergasse por perto.
Os filhos,  vieram encher a casa e dobrar as dificuldades diárias.
Cada dia mais sozinha para tratar da casa, dos filhos e dos campos. O Caciano, tinha mais dias de trabalho por fora, fazendo madeiramentos para as casas ou reparando as alfaias do campo: carros de bois, arados ou mesmo fazendo-os de novo.
A família do Caciano, queria mandar em casa e nos filhos da Carminda, ao que ela, soube impor-se desde a primeira hora, criando lutas e guerras sem nexo que tinham por base a inveja.
O marido, começou também a voltar para casa cada vez mais tarde e sem parte do salário.
Um dia, a mulher, adormeceu os filhos e decidiu ir procurá-lo.
Saíu perdida na escuridão da noite e foi descobrindo o caminho até à taberna.
_Então Caciano, não vens para casa ? Ainda não são horas....? Disse-lhe ela de uma assentada.
Não sabia que as suas palavras estavam a acordar uma fera que se lhe atirou com uma fúria desmedida e quase descontrolada.
 Todos os homens se levantaram e saíram para suas casas.
- A senhora sua mulher tem razão Caciano! É tarde, e nós também vamos embora.
Ele sentiu-se humilhado por este gesto e maltratou-a com palavras frias .
Ela respondeu-lhe muito abertamente: 
- Podes ficar descansado! A partir de hoje, nunca mais te venho procurar. Podes ficar até toda a noite e toda a semana. Gasta tudo quanto ganhaste durante o dia e quando precisares da tua família volta para casa.
Parece que os teus filhos e eu já não temos valor algum................
A custo, guardou as lágrimas que teimavam em sair dos olhos abruptamente, seguindo juntos pelo caminho a coberto da noite.
Durante algum tempo, ele voltava cedo para casa e lá se foram entendendo mas, aos poucos deixou-se vencer pelos comentários dos outros homens e voltou a fazer as mesmas cenas.
Cada dia, com o apoio dos filhos, a Carminda tomava as rédeas do governo da casa, e lá ia procurando viver com o que a terra lhe dava e com um rebanho de algumas ovelhas, que os mais velhos guardavam nos montes. À noite, depois da ordenha, fazia uma coalhada que transformava em queijos muito saborosos. 
Outras vezes, e para fazer face ao crescimento das despesas, vendia alguns sacos de castanhas  ou batatas.
Os ciumes do Caciano, feriam-na demais . Ele,  já não sabia o que lhe dizer.
_ Não vendes mais batatas a esse preço.....não pagam a despesa  e podem faltar aqui em casa......
_ Fica descansado, respondia-lhe. Imagina que é uma parte tua e outra minha. Eu, apenas vendi a minha parte, e sabes onde gastei o dinheiro - em roupa para os nossos filhos.....Aí o Caciano ficava vencido. Os filhos, eram tudo quanto ele mais amava na vida.
Os anos passaram muito ràpidamente e cada dia o desconforto era maior. 
Os filhos começaram a sair de casa. Serviço militar e França. Em quatro anos, casaram quatro filhos.  
O Caciano, pensou também emigrar, mas a saúde já era pouca e a vida era dura demais por lá.
Arrancou do Porto numa madrugada com destino a Estugarda - Alemanha mas, não aguentou um semestre.
Pegou em algum dinheiro que tinha, e pediu a um amigo -" se vais escrever para a tua mulher, manda-lhe este dinheiro e ela que o dê à minha Carminda para comprar pão para os filhos".
Mais tarde, perguntou se ela tinha sido entregue desse dinheiro, ao que a Carminda respondeu:
-Oh Caciano, então tu achas que eles alguma vez me davam o dinheiro...?
Foste dá-lo de mão beijada e de cabeça ôca. Porque não me escreveste tu .....?
As palavras faltavam-lhe e só via que já não podia mais recuperar aquele dinheiro.
Veio ainda para França, onde procurou a sua filha mais velha mas, a saúde foi-se deteriorando e acabaram por lhe comprar um bilhete de comboio que o trouxe para Portugal.  
A sua incapacidade agravou-se ainda com um acidente de caça. 
Numa bela manhã, ao saltar um ribeiro com a arma carregada , esta disparou e decepou-lhe metade da mão direita.
A sua Carminda, com todo o sangue frio que possuía, arrancou o avental e embrulhou aquela mão esfarrapada. Aparelhou o cavalo das primas e correram ambos para o Médico.
Perdeu a mão mas, não perdeu o vício da caça. Logo que as dores abrandaram, lá ia ele novamente em busca de uma lebre ou mesmo um coelho.
Num dia de festa, voltaram para casa já noite. 
O Caciano sentiu-se mal e disse à mulher. Vou me deitar !
Caiu na casa de banho, e ela, sozinha, arrastou-o para a cama, ainda com vida mas, acabaria por falecer em poucos minutos.
Já tinham os seus oito filhos todos casados e tinham passado o último Verão juntos. A situação apanhou-os desprevenidos . 
A mulher, estava muito debilitada mas, com a sua coragem, conseguiu vencer ainda esta última prova.
Arrumou as coisas, e  foi a França visitar os filhos e passar um tempo por lá. 
Hoje, está cansada e doente. A sua casa, ameaça ruir. Os filhos, esqueceram-na. Alguns, querem por força levá-la para um lar. Que será de mim...? Pergunta, entre soluços e lágrimas.
Os lares, podem até ser muito bons mas, eu não gostaria de morrer lá. Dei tudo aos meus filhos e hoje voltam-me as costas porque já não consigo segurar as minhas urinas nem andar com desembaraço.
- Já não presto para nada e não consigo fazer nenhum trabalho....vai exclamando como uma súplica criada no fundo da alma.
Não lhe peço muito. Quero apenas uma sopa e um canto sossegado para dormir.
Acabou de fazer 89 anos no dia 24 de Dezembro.
Nesse dia contou todos os telefonemas que lhe fizeram e quantas prendas recebeu.
Os seus olhos redobraram de esperança. 
Quem sabe se os filhos lhe acarinham este seu último desejo.
Talvez possa viver em paz os últimos dias. 
Esta é, sem dúvida, a prenda que vai guardando só para si mas, que nós adivinhamos no seu olhar quando paramos para lhe ouvir todas estas histórias contadas na primeira pessoa.
Avivámos mais a fogueira que docemente se foi extinguindo.
Afinal, queimamos parte das nossas raízes.
Luiscoelho

6 comentários:

  1. É um retrato do Portugal do século passado(com matizes actuais) que aqui nos retrata. A condição da mulher como elemento subalterno, martirizado, condenado ao trabalho constante da casa dos filhos num mundo de homens corrompidos pela miséria a afogarem mágoas e tristezas em tigelas de vinho.
    A velhice que hoje constitui, um peso social na nossa cultura é valorizada noutras culturas, sendo o idoso respeitado por ser visto como o detentor do saber, da experiência. Para nós, muito erradamente, é apenas aquele que deixou de ser útil numa perspectiva completamente absurda e materialista.
    Gostei muito!

    L.B.

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  2. Meu amigo
    Texto muito real...concerteza real, pois é o que nos espera a todos nós, nesta vida de correrias...os mais velhos não têem lugar.

    Beijinhos

    sonhadora

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  3. Querido amigo,lindo sua Historia,infelismente se repete em todo lugar;precisamos entender que em asilos,nossos idosos estão esilados,de carinhos e convivência familiar o que já os fragiliza,os deixa a querer não viver,em qualquer idade e condição o amor é fundamental.A ingratidão é o pior defeito de um ser humano;receber amor, carinho e dedicação por toda uma vida e ingnorar,não deixar acontecer a lei do retorno.
    Na biblia o senhor diz: Filhos honrai pai e mãe pra que teus dias se prolongue e se vá bem sobre a terra.
    Obrigada por uma leitura agradavel e feliz,um abraço.

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  4. Como diz Lidia Borges, é um retrato do século passado. É quase intemporal, digo eu.
    É o teu melhor registo, Amigo. Gosto muito da forma como contas as histórias. A tua forma simples (a tua matriz, afinal) de narrar os pormenores que só pessoas com grande sensibilidade e saber de vida feito são capazes de descrever assim.
    Um forte Abraço!
    João

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  5. Uma história duma vida muito sofrida, de quem vê aproximar-se o fim dos seus dias tão triste ou ainda mais do que foi toda a sua vida.
    Não concordo que seja do século passado, porque cada vez há mais velhos a serem "descartados" nos hospitais, pelos familiares que querem é ver-se livres deles.
    E o estilo de vida de Carminda ainda hoje se verifica naquelas aldeias mais serranas e afastadas da civilização.
    Conheço um bocado do dito "Portugal profundo", e sei como as pessoas ainda vivem por lá.
    Gostei imenso do teu texto, escrito duma forma muito real e verdadeira.

    Uma boa semana.

    Beijinhos
    Mariazita

    PS - Peço que me perdoes mas esqueci-me de te dizer, em devido tempo, que publiquei no meu blog A CASA DA MARIQUINHAS um selinho de apoio à Campanha Limpar Portugal, que gostaria que fosses buscar.
    Encontra-se no penúltimo post.
    Obrigada

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  6. Gostei muito,
    muito desta sua história e da forma
    clara e envolvente como a narrativa decorre.
    Um grande abraço, Luís
    Vóny Ferreira

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